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O juízo comum afirma que a boa formação de caráter decorre da interiorização de valores e exemplos de ação moral. Por isso os pais se esforçam para representar o papel como embaixadores da lei que gostariam que seus filhos seguissem. Nós nos dedicamos muito ao problema da escolha de escolas, da oferta de experiências e do favorecimento de bons modelos também porque isso facilita o trabalho de criação de filhos. Quando a criança incorpora responsabilidade e cuidado de si, conquistando autonomia, gradualmente ela nos liberta do esforço civilizacional, de sermos agentes diretos da apresentação e manejo da lei. Esta teoria não é falsa, mas um tanto parcial. Nosso superego, esta instância que Freud descreveu como representante da lei em cada um de nós, não é formada apenas pela imitação do exemplo dos pais, mas crucialmente pela relação que a criança intui existir entre estes pais e os pais dos pais, ou seja, tudo aquilo que limitou, constrangeu e facultou a implantação da moralidade nos próprios pais, redutivamente seus avós. A pergunta das crianças neste momento poderia ser a seguinte: se não foram meus pais que fizeram a lei do mundo, quem foi então?

       Quando nos é dado escolher o que nossos filhos leem, que filme assistem, que canal de televisão ou site frequentam, não devíamos nos preocupar apenas com o exemplo que isso inculca na criança. Isso forma, no máximo, seu Ideal de Eu. É preciso atenção com as narrativas que possuem relevância cultural e valência ética para aquilo que foi significativo na história “moral” dos pais. É importante distinguir aqui a adesão ao comportamento moral por imitação de uma boa imagem que devemos realizar, ou por trabalho de apropriação singular da lei. No primeiro caso obedeço o que o outro me diz que é bom, no segundo exercito minha própria capacidade de julgar e descobrir o que é bom. No primeiro caso obedeço regras, no segundo me preocupo em como criá-las. No primeiro caso a moralidade é entendida como um depósito de boas referências a seguir, no segundo como trabalho de separar-se de imagens e extrair, a partir delas, seu valor simbólico.  

       Na hora de escolhermos que tipo de narrativa oferecer para a criança, devemos decidir por uma imagem desejável do mundo, ocultando seus piores aspectos, ou seria melhor apresentar o mundo tematizando o que ele tem de pior? É preferível falar da ganância, do egoísmo, da violência ou da injustiça ou seria melhor reduzirmos os estímulos nocivos como o Lobo Mau, a Bruxa e o Homem Mal? Até onde “atirei o pau no gato” é uma incitação à violência com animais ou uma ação, onde nos admiramos e nos solidarizarmos com o berro dele, como quer a Dona Chica? Reconhecemos claramente que a narrativa clássica sobre princesas pode formar um ideal romântico de amor que será causa futura de sofrimento para certo Ideal de eu feminino, mas até que ponto devemos excluir a tematização do mal e suas inevitáveis ilações de crueldade?

       Vejamos como este problema está na origem da literatura infantil alemã do início do século XIX, examinando As travessuras de Juca e Chico (Max und Moritz), um clássico que acaba de ser traduzido pela editora Iluminuras. O texto compõe-se de um prólogo, sete atos e um epílogo. A cada nova travessura generalizam-se a aprofunda-se a confrontação de instâncias clássicas de formação moral, no que se pode chamar de escalada de sadismo.

       A primeira vítima é a viúva Bolte que vive com suas três galinhas e o frango cruelmente mortos por uma armadilha dos traquinas. Não contentes com isso os dois pescam e comem as aves do alto da chaminé, fazendo o cachorro da viúva ser punido por isso. Depois o alfaiate Böck, cai da ponte serrada pelos dois, sendo salvo por gansos que o tiram da água e pela esposa que o aquece com seu ferro de passar. Na quarta travessura o professor Lämpel, tem o tabaco de seu cachimbo substituído pela pólvora. Onkel Fritz tem sua cama invadida por besouros, postos pelos dois pestinhas. A sexta ofensa tem um contexto um pouco diferente. Trata-se da semana santa, do padeiro que faz Prätzels doces. Entrando pela chaminé eles caem na farinha, sobem para pegar os doces e a cadeira quebra e eles caem na massa. O padeiro os flagra e os assa no forno, mas eles se livram roendo “como ratos” a massa e “ressuscitam como dois diabinhos”. Este é momento da ameaça e do aviso. O momento do “quase” tão importante para a formação moral. As coisas começar a sair errado, mas a reviravolta torna tudo ainda mais emocionante. A derradeira travessura representa, portanto, um desconhecimento da advertência. Eles furam o saco de farinha do camponês espalhando seu conteúdo. São pegos e colocados no saco vazio, moídos pelo moleiro. Reduzidos a fragmento eles são comidos por patos gansos e galinhas.

           Uma leitura possível do conto diria que ele retrata ascensão de representantes simbólicos da moralidade. A viúva é uma imagem que simboliza a família, agora composta por seu cão e frangos. O alfaiate representa as aparências civilizadas que se deve manter no espaço público. O tio dá ocasião para abordar o respeito que devemos ter aos mais velhos e seu descanso. A Semana Santa é um ícone da religião que convida aos ritos e ao adiamento da satisfação. Finalmente temos um ataque ao trabalho do camponês, representado pelo desperdício de seu produto. Assim como ninguém aparece dando lições de moral durante o conto, ao final nenhuma voz se levanta para impedir que o moleiro efetive tamanho castigo. A moralidade convencionalista diria que isto é um exagero ao qual a criança não deve ser exposta. A moral reflexiva dirá quase o contrário. Quando nos identificamos com as vítimas das traquinagens, vamos convivendo com a aparição de sentimentos de vingança, justiça e desagravo pelos dois traquinas. Desejamos que a justiça chegue. Não obstante sentimos, ao final, que o castigo não foi compatível com o crime. Detalhe crucial. Este juízo sobre o exagero da punição é criado pelo próprio leitor. Ele expressa seu trabalho de aprimoramento da moralidade, que nos faz flagrar e dominar nossos piores sentimentos, entendendo sua razão de ser e nos incitando ao problema de como deveríamos nos conduzir. Mais do que a convicção genérica de que eles devem ser punidos está em jogo que tipo de justiça queremos. Efeito desta dúvida moral é que a criança aprende a se autogovernar e a suspeitar de seus próprios, e excessivos, afetos de raiva e vingança.

       As travessuras de Juca e Chico, e a ascensão do gênero das histórias ilustradas para crianças, ocorre em um momento decisivo para a mutação da infância e da educação na Alemanha que precede e prepara a unificação nacional de 1871. Há uma profunda alteração dos padrões de autocoação (Selbstzwang), no contexto social no qual os alemães sentem-se humilhados, com a ocupação napoleônica de 1807, o que vem a aumentar seu sentimento de diminuição diante da ausência de uma revolução política e dos costumes franceses, todos como mais civilizados (Zivilization). Contra isso os alemães desenvolvem um cultivo da cultura (Bildung) nas artes, na filosofia e na ciência, que de certa forma tornará este sentimento de inferioridade uma marca de caráter. Ao contrário da Holanda e da França, onde a revolução e a educação liberal baseava-se na negociação e na persuasão, na Alemanha o padrão de autoridade dividiu-se fortemente em torno da disciplina, obediência e constância, cuja origem é a aristocracia militar. Entende-se assim que exista apenas uma figura notavelmente ausente na irreverência dos traquinas: o exército.

       Salta aos olhos que ninguém tente educar, ensinar ou civilizar os dois. Eles apenas são punidos ao final. Compare-se esta estratégia educativa com as fábulas de La Fontaine (1621-1695) ou as histórias infantis de Perroult (1628-1703) na qual se sobressai o diálogo educativo, derivado do sermão, inspirador de culpa interiorizada e do exemplo comparativo. Nada disso aparece em Busch e Struwwelpeter. Isso torna a trama muito mais realista do que os contos de Grimm que envolvem Rainhas, Reis e Bruxas, no contexto romântico anterior ao surgimento desta nova literatura moral. Grimm assim como Goethe de “Jovem Meinster” estão criando o romance de formação, no qual os adultos entendem que sua vida tem um sentido na medida que se ocupam e se responsabilizam pela própria história (Bildung).

       A satisfactionsfähige Gesellschaft, ou seja, sociedade da satisfação competente, divide a Alemanha, recém unificada à partir da Prússia, entre nobreza militar e incivilidade rural pequeno burguesa. Na raiz do romance de formação para crianças está um confronto de moralidades, a do exemplo como cultivo da imagem aristocrática de si, e a do reconhecimento e imaginação sobre nossas fantasias e disposições contra-civilizatórias. A promessa de que toda e qualquer pessoa pode encontrar uma tarefa significativa e gratificante na vida não se identifica com a construção de uma imagem respeitável para os outros. A severidade e crueldade de Juca e Chico representam uma denúncia crítica contra a força anti-humanista, anti-moral e anticivilizatória que não remonta apenas ao atraso civilizatório alemão, mas a tolerância social para com a violência que trará um alto custo no futuro. Entre agir moralmente e esconder nossa corrupção mais íntima, ou reconhecer que somos feitos da mesma matéria moral que nosso adversários e que temos que encontrar um destino para ela, a segunda alternativa está com os contos infantis e a primeira com a nascente ciência da educação das crianças.

       O engano que subjaz a concepção da educação por imagens exemplares consiste em acreditar que a manipulação das narrativas educam apenas as crianças e não indiretamete os adultos que delas se encarregam de educar e cuidar. Max e Moritz é uma lição indireta para os pais que não deveriam adotar uma atitude leniente com a brutalidade infantil, se não querem que seus filhos sejam punidos por uma leniência equivalente. Esta mesma moralidade adulto-cêntrica considera que a boa educação seria aquela que esconde da criança, e no fundo dos próprios adultos que dela se encarregam, o universo de sadismo, erotismo e violência que habita o imaginário infantil. Agindo exatamente como os alemãs que tentavam incorporar Rousseau, sem sua filosofia da liberdade, tal perspectiva pedagógica quer acabar com o pau no gato, com o lobo mau e com a bruxa. Tais personagens, os campeões de audiência entre crianças pequenas, oferecem o suporte imaginário para que fantasias contra civilizatórias possam ser examinadas, nomeadas e tratadas. Sem tal suporte de simbolização a criança é exposta a um mundo no qual ela não pode reconhecer o que ela mesma desaprova em si, e consequentemente praticar o refinamento de sua racionalidade moral. Imaginar que as crianças se identificam com a imagem que lhes é oferecida, e não com o juízo de moraldiade que ela cria ao se separar desta imagem é atribuir muito pouco de sujeito às nossas crianças. Na prática isto tende acontecer apenas quando a narrativa se fizer acompanhar de displiscência no comentário, de falta de discussão e de demissão do trabalho interpretativo. Nenhuma história moral funciona como uma máquina que produz efeitos de identificaçao à valores e obediência de práticas. Contudo, sem este compartilhamento da mediação entre realidade e ficção, a criança fica vulnerável a substituição das imagens-tipo, por outras, o que é a tendência do funcionamento social.

       É exatamente esta moralidade visceralmente inversiva que é explorada em Struwwelpeter, o João Felpudo. Frederico o malvado que ataca animais é mordido pelo cachorro que termina comendo sua refeição e ficando com o chicote que antes lhe surrava. Paulinha, a desobediente, acaba quiemada e reduzida a cinzas porque não obedece a ordem de não brincar com fósforos. Os meninos que caçoam do mouro cuja pele é escura são submergidos pelo sábio Nicolau em um pote de tinta, para sentirem-se na pele do outro. A lebre que era caçada termina caçando o menino até levá-lo literalmente ao fundo do poço. No entanto é Conrado Chupa-Dedos o personagem mais bizarro de todos, uma vez que punido com o corte de seu dedão pelo mau hábito oral. Gaspar, que se recusa a comer desaparece no quarto dia. Felipe o inquieto derruba a preciosa comida no chão. João Nariz Empinado acaba caindo no rio. Beto o desobediente sai numa noite de tempestade e é levado para voando pelos céus agarrado a seu guarda chuva.

       São histórias que primam pelo exagero, tematizando medos e birras comuns entre as crianças, que muitas vezes representam desafios educativos para os pais. Desta forma elas oferecem um suporte para a fantasia, que sem imagens é vivida como angústia, e ao mesmo tempo permitem que a criança e o adulto se separem destas imagens. Max und Moritz e Struweelpeter conectam duas séries de ficção muito importantes: as figuras do desejo e da transgressão com as imagens da punição e suas consequências. Duas séries triviais se tomadas isoladamente: a piromania, o negativismo alimentar, o sadismo de animais, o bulling, os excessos do erotismo oral e assim por diante. Do outro lado temos a série das consequências que está baseada num princípio kantiano universal: não faça aos outros o que você não quer que aconteça com você. Entre elas está o mais importante: a separação da imagem (função do exagero) e apropriação da lei (função da conclusão deixada no ar e criada portanto por um ato subjetivo da criança).

       Freud explorou este processo de reversão simples entre ser agente e ser paciente de uma ação. Contudo ele concluiu que estas passagens são importantes para que a criança efetive um progresso na sua relação com o Outro e na sua conquista do próprio desejo. Não basta que possamos inverter e nos colocarmos na posição do outro, pois isso faria simplesmente com que trocássemos o sadismo pelo masoquismo. A solução está na formação de uma nova identificação que deixa para trás ambos os modos de realização da pulsão. Lacan dirá que é quando a criança assume uma imagem ela se transforma concluindo a identificação.

       Isso é central para este novo gênero emergente com Busch e Hoffman. Este último queria comprar um presente para seu filho, mas só encontrava longos livros com moralidades adultas que terminam em recriminações e afirmação de regras. Neste contexto ele cria uma nova solução: um material ilustrado, curto, baseado em imagens e cuja conclusão não excedesse demasiadamente a própria imaginação da criança. Ou seja, este trabalho que passa pela óbvia consideração de que as punições fazem sentido, são legítimas, contudo elas são exageradas, convida ao trabalho de assunção do juízo moral. Caso contrário continuaremos a pensar como a nobreza aristocrática alemã do século XIX de que a moralidade é uma questão de seguir regras e exemplos, que devemos agir eticamente para mostrar aos outros nossa superioridade. A moral não é apenas um modo de vida e uma visão de mundo, ela é sobretudo a capacidade de separar-se de exemplos e de entender a lógica dos contra-exemplos. Ela não é uma questão de aplicação do código, mas da economia flutuante e contraditória de valores que ele contém.

“O ideal alemão, o código alemão de comportamento não faz concessões às fraquezas e imperfeições humanas. Suas exigências eram absolutas e inflexíveis. Somente a mais total obediência às normas era capaz de proporcionar satisfação. Durante séculos de dominação absoluta, os alemães tinham desenvolvido um anseio mudo de ideais, crenças, princípios básicos e padrões nacionais que pudessem ser obedecidos de forma absoluta. Era uma questão de tudo ou nada.”

        Este é o supereu quando ele se cola ao funcionamento dependente de imagens. Imagens externas que são interiorizadas como se fossem a própria lei e não como se fossem o suporte para uma elaboração da lei autônoma que cada um forma em relação ao próprio desejo. Quando percebemos nossa cultura higienista, que insiste em preservar as crianças do risco moral, como se longe das imagens do mal elas se poupasse de sua própria maldade, entendemos como se forma uma atitude de intolerância insuportável ao padrão de moralidade alheia. Se a moral depende da adesão mimética a imagens, outras imagens são uma ameaça à minha moral.  Assim acalenta-se a  tentação de regressar para a Alemanha do século XIX, com sua disciplina da ordem e obediência prussiana. Contra isso dispomos de poucas resistências. Juca e Chico e Struweelpeter são uma delas. 

  • Este texto foi apresentado durante o evento Juca e Chico: Irreverência e provocação na literatura infantilorganizado pelo Goethe-Institut e as editoras Pulo do Gato e Iluminuras.

Christian Ingo Lenz Dunker: psicanalista, professor titular em psicanálise e psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP. Coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Analista Membro de Escola do Fórum do Campo Lacaniano. Colunista da Revista Mente e Cérebro. Autor de Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma (Boitempo, 2015) e Estrutura e Constituição da Clínica Psicanálise (Annablume, prêmio Jabuti 2012).

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