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Juan José Saer afirmou, em alguma ocasião, que não há romances históricos no sentido de relatos que tentam reconstruir uma época determinada do passado. Para o autor, a literatura não reconstrói passado nenhum, ela “simplesmente constrói uma visão do passado, certa imagem ou ideia do passado que é própria do observador e que não diz respeito a nenhum fato histórico preciso”. Por certo, essa peculiar concepção acerca das relações que a literatura pode estabelecer com a história permeia O enteado, este magistral romance do escritor argentino que, em 1983, irrompeu, com sua singularidade poética, numa profusa linhagem narrativa que, na América Latina, tem explorado até a exaustão os vínculos entre a ficção e a história.
O narrador é o único sobrevivente de uma expedição espanhola que, num impreciso ano do século XVI, atinge as costas do Rio da Prata. Depois de uma prolongada convivência com a tribo antropófaga dos colastiné, retorna à Europa para, no final de seus dias, empreender a tarefa de narrar os anos passados em terra americana. O romance assume a forma de uma escrita autobiográfica que visa, sobretudo, registrar a intimidade da experiência vivida. Nessa configuração discursiva, onde se delineia o perfil de um sujeito de memória, ecoam, também, as crônicas da Conquista e os relatos etnográficos que, na época, duplicavam, pela inscrição da palavra, o gesto fundador da descoberta do Novo Mundo. Porém, longe do tom assertivo de qualquer discurso instituidor, o velho narrador interna-se nos meandros de uma confusa e imprecisa memória que o leva a questionar não só a exatidão das lembranças mas, também, a real densidade da experiência vivida e, principalmente, as certezas denominativas da linguagem.
História, memória e escritura entrelaçam-se neste sublime romance de Juan José Saer que explora, com admirável beleza poética, as possibilidades de representar, por meio da palavra, o ilusório universo de lembranças que sustenta — e, por vezes, até justifica — uma vida.
Ana Cecília Olmos
da Universidade de São Paulo