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URGENTES PREPARATIVOS PARA O FIM DO MUNDO

INÁCIO ARAUJO

  • R$ 75,00

    Há pelo menos três maneiras de ler os contos de Urgentes preparativos para o fim do mundo, de Inácio Araujo.

   A primeira consiste em se deixar levar pelas treze histórias surpreendentes e divertidas – que ora flertam com a narrativa fantástica, ora com a crônica de costumes, às vezes com o drama metafísico, outras com a metaficção –, tecidas com um elenco de personagens desafortunados, inadaptados ou simplesmente loucos.

   Uma leitura mais detida consiste em seguir a fabulação irônica do autor, feita de lances inesperados, encadeamentos absurdos e vozes narrativas ladinas, que ao mesmo tempo confessam e enganam, seduzem e repelem, tornando o leitor um misto de juiz e comparsa de seus atos e pensamentos.

   Por fim, mergulhando um pouco mais ao fundo, o que encontramos nestas histórias é uma inquietante reflexão sobre a condição humana, sintetizada pela epígrafe do livro, extraída dos Ensaios, de Montaigne: “Tudo abraçamos, mas só vento agarramos”.

    Conto após conto, o autor constrói um aparelho narrativo que permite refletir sobre o esgotamento de nossas antigas convicções, sejam as da política, da moral ou da religião, e sobre as novas e estapafúrdias esperanças que vão surgindo, igualmente condenadas à ruína.

    Movido por um ceticismo implacável, Araujo vasculha este nosso mundo para exibir a comédia sem fim em que nos metemos, na qual a história acabou por se converter em logro, o presente em desconsolo e o futuro em delírio.

    Ora atônitos, ora desencantados, os personagens do livro também incitam a meditar sobre a potência do tempo e a fragilidade do olhar subjetivo. E é importante notar que o próprio tempo foi cúmplice na elaboração dos contos, que começaram a ser escritos em 1987, logo após a publicação de Casa de Meninas, o romance de estreia de Araujo, prêmio de autor revelação da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte).

   Colocadas de lado naquela época, as histórias foram retomadas pelo autor mais de duas décadas depois e retrabalhadas nos últimos sete anos até que atingissem a melhor decantação, a forma precisa e arrebatadora que o leitor encontrará em Urgentes Preparativos para o fim do mundo.

Alcino Leite Neto


Os pequenos


Fazemos tudo de que os outros são capazes, e o fato de sermos um povo de pequena estatura não prejudica de forma alguma nosso desenvolvimento intelectual ou físico. Apenas que somos levados a executar as tarefas com um toque de urgência que nos distingue da gente maior. Quando uma de nossas crianças escolhe a carreira que pretende seguir, aquilo que gostaria de estudar, o faz do mesmo modo e com os mesmos critérios que as outras. Falta-lhes, no entanto, a inocência despreocupada dos demais. Não pensam em realizar-se, apenas em dar um sentido à vida. Não aspiram à felicidade, apenas a viver dignamente. Todos os obstáculos, porém, colocam-se a este módico desígnio. As pessoas grandes olham-nos com estranheza. Nada dizem, mas é diferente do jeito como encaram os seus. Seus olhos não conseguem fixar-se em nossos rostos, desviam-se de modo quase automático para o corpo. Cumprimentam-nos estendendo mãos desnecessariamente enormes, como se não soubessem o destino que terão em contato com as nossas. Não sou dos mais infelizes, penso: Deus concedeu-me a graça de fazer alguns bons negócios, que me permitem viver com folga e, mesmo, ajudar os menos favorecidos entre nós. Com frequência, porém, sonho que sou um homem alto. Que ao caminhar pelas ruas meu rosto não roça na calça dos passantes, nem que eles me derrubam nos lugares movimentados, por não perceberem minha presença, nem que as mesas e cadeiras dos restaurantes são desmedidamente altas e desajeitadas. Também me parece pouco cortês o jeito como as pessoas me olham nesses locais. Sim, o espaço nos é hostil, mas não vejo nisso nenhuma razão de chacota. O filé que o garçom recomendou naquele dia não apenas era excessivo para meu apetite como para meus braços. Céus, o prato era quase do meu tamanho e, apesar das almofadas que o maître nos trouxe (recusamos as cadeiras de criança que pôs à disposição), mal encontrava uma posição para cortar a carne e quase nem distinguia Mínima do outro lado da enorme mesa. Passamos o jantar sem trocar uma palavra, com medo de não escutarmos um ao outro. À saída, percebi que minha companheira chorava. Nunca mais a trouxe a um desses lugares, e na noite que passei insone condenei-me infinitas vezes pela ideia que tive. Aprendi que mesmo o sucesso nos negócios não alivia nosso sofrimento. Esse requisito, ao que me parece indispensável para os outros alcançarem a felicidade, nos é totalmente inútil. Naquela noite escutei Mínima, que falava no seu sono: palavras incoerentes que se acompanhavam de contrações faciais, frases inacabadas onde uma palavra se distinguia, reiterada e amarga: monstros. Não somos monstros, somos pequenos. Algum dia o provarei: terei o suficiente para comprar as terras em que almejo instalar meu povo. Ali teremos nosso prefeito, nossos advogados, nossos comerciantes, nossas pequenas casas, nossas pequenas ruas. A gente grande que por lá aparecer será tratada com cortesia e distância. Não faremos deles curiosidades circenses, como eu ou Mínima. Conheci e amei Mínima no mesmo dia em que, trazidos pela mãe, ela e seus irmãos vieram me pedir emprego no parque. Argumentei, durante alguns minutos, que um parque de diversões não é o mesmo que um circo. Acabei convencido pelo olhar tristonho de Mínima. Ela tinha então 13 anos, apenas. Casamo-nos dois anos depois e fomos morar em um prédio de apartamentos. Foi a mais profunda mudança ocorrida em minha vida. Até ali, estivesse o parque onde estivesse, eu habitava sem incômodo algum canto de trailer. Como agora tinha uma longa concessão — 10 anos — para permanecer em São Paulo, no mesmo terreno, e uma amada, decidi dar-lhe o mesmo conforto a que têm direito os demais cidadãos. Jamais entenderei a hostilidade dos condôminos, a maneira altiva como nos ignoravam, os cochichos detestáveis pelas costas, quando se queixavam de que nossa presença desvalorizava o edifício. A todas essas adversidades, nunca ouvi Mínima antepor o menor protesto. Sentia nessas ocasiões a tristeza ocupar seus olhos — a mesma que notara no dia em que a conheci — mas nunca ouvi uma só palavra de queixa. Pior do que tudo, algum tempo depois de adquirir o apartamento vi nosso edifício ser cercado por outros prédios — o que seria terrível para qualquer um, mas em especial para nós que habitávamos um andar baixo, onde podíamos apertar o botão do elevador sem precisar pedir favores ao porteiro. Fomos então privados do doce exercício de, nas noites quentes, subirmos em um banquinho para apreciar a paisagem. Estávamos emparedados. Nunca poderei exprimir meu sentimento de impotência diante da impossibilidade de remover os preconceitos que castigam nosso povo, mas, olhando para trás, vejo com especial tristeza a maneira como o pequeno prazer de olhar a paisagem nos foi pouco a pouco usurpado. Mínima nunca pronunciou uma palavra contra essa fatalidade: limitava-se a dizer que, agora, apreciava mais os programas de televisão. Mas me constrangia pessoalmente vê-la entregue, sentada em um sofá, comendo bombons e engordando. Junto com os irmãos, ela formara uma trupe de trapezistas admirável. Nunca esquecerei a leveza, a beleza, a agilidade no trapézio. Terminou sua atividade prematuramente, com a morte de Lavínio, irmão mais moço, atingido por uma doença dos ossos. Depois foi Lépido — o mais audaz de todos. Não fossem tão pequenos, ganhariam fama pela habilidade. No entanto, pouco interessava ao público as demonstrações controladas de perícia, apenas sua pequenez. Nesse tempo, vi pais trazerem seus filhos até junto de nós apenas para mostrarem de perto, em nossos rostos, a marca de uma maturidade em que os meninos não podiam acreditar. “Eles têm o seu tamanho, mas são gente grande”, dizia aquele porco com uma risada grande, feliz com o paradoxo. A nossos filhos, a nossos pequenos, procuramos ensinar que um homem não se mede pelo tamanho, que uma estatura modesta não determina o caráter, que a altura de um humano não limita suas virtudes nem lhe aumenta o valor. Eles fingem acreditar no que dizemos e não tocam mais no assunto, assim como eu fazia quando era criança. Seja como for, seus sonhos não mentem. Há dias, Sancho, meu menor, contou-me que sonhou com Deus e em seu sonho Deus era um homem muito grande. Não me importo que meus filhos me odeiem por tê-los trazido ao mundo. Gostaria, no entanto, que poupassem Mínima desse desgosto. Suas dores aumentaram nos últimos meses. Certos dias, falta-lhe ânimo para sair da cama por mais de três ou quatro horas. Sabe que seus dias estão contados. A doença que vitimou os irmãos, que antes disso vitimara seu pai, já a atingiu. Procuro afastá-la dos garotos, de modo a não se tornar vítima dos sarcasmos com que procuram descontar a vergonha que passam diariamente no mundo das pessoas grandes. Por isso precisei tirar Manolo, o mais velho, do colégio: seus colegas riram, no dia em que compareci a uma reunião de pais e mestres. Mínima, com sua dedicação extrema, ensinou-lhe então as primeiras letras. Não pôde ir muito além: Manolo aceitou se transferir para outra escola, com medo dos colegas e, é preciso convir, a instrução de Mínima restringe-se também às primeiras letras.

Somos, como disse, um povo acuado, com esses corpos calamitosos, mas não monstros. Acredito em Deus, acredito em uma outra vida onde nossa condição não se confunda com a desgraça que nos atinge o tempo todo. Serão todos tão otimistas como eu? Numa dessas noites, o pequeno Sancho também sonhou com um deus enorme, que todo dia tornava o seu universo maior, alargando seus domínios. Como por vezes acontece, o sonho do menino transformou-se e, no pesadelo que tomou o sono, os homens encolhiam, ficavam menores, minúsculos em tamanho, alegria, ambições, e mesmo em seus sonhos. Eram coisas quase invisíveis, de tão ínfimas.

Há momentos em que penso na doçura de morrer apenas para encontrar esse Paraíso feito da ausência dos corpos. Há momentos, porém, em que temo — como o pequeno Sancho — a dimensão desse deus maior que tudo, que no seu pesadelo tem a forma de uma baleia obesa, infinita e risonha. Por medo dessa agonia infindável é que Sancho gritou. Corri até ele e acariciei sua cabeça para acalmá-lo. “Na vida eterna todos os homens têm o mesmo tamanho?”, perguntou ainda indesperto. “Sim, todos são iguais”, respondi. “No meu sonho entrou um fantasma, um fantasma azul e assustado. Na mesma hora a Terra trincou inteira e começou a chorar. A água entrou por toda parte”. “Nada disso é verdade, Sancho, foi só um sonho”. “E por que, então, enquanto fugia da inundação de choro, Deus falou que eu seria anão eternamente, porque o que é jamais poderá deixar de ser?”. “Foi só um sonho, filho. Durma, agora”. “Deus é o culpado”, insistiu, bocejando. Colocou o dedinho na boca e voltou a dormir.

Autor(a) Inácio Araujo
Nº de páginas 160
ISBN 978-85-7321-442-0
Formato 13,5x22,5 cm

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